A Teoria da Cognição de Santiago
A mente e a consciência
"Atualmente, uma nova compreensão da vida levou a uma das mais importantes conseqüências da Filosofia: a concepção inaudita da natureza da mente e da consciência que superou o dualismo cartesiano entre mente e matéria."
No livro "A consciência na Filosofia e nas neurociências da cognição" (1994), seus organizadores declaram com excepcional franqueza na introdução: "Muito embora todos concordem em que a mente tem algo a ver com o cérebro, ainda não há consenso generalizado quanto à natureza exata dessa relação."
O grande avanço representado pela neurociência para o conhecimento evolutivo do ser humano foi o de perceber que a mente e a consciência são processos - e não a visão de Descartes, mantida até as novas descobertas, que relegava a mente ao lugar de "coisa pensante" ( res cogitans). A aurora do novo pensamento foi desenvolvida na década de 1960 por Gregory Bateson (que cunhou o termo "processo mental") e por Humberto Maturana (com o seu estudo da cognição - o processo do conhecimento).
Maturana e Francisco Varela, em 1970, ampliaram este estudo - o que redundou numa teoria plenamente formada: A Teoria da Cognição de Santiago.
A Teoria da Cognição de Santiago
Idéia central: identificação da cognição, o processo de conhecimento, com o processo de viver.
Maturana e Varela definem: A cognição é a atividade que dá garantia à autogeração e autoperpetuação das redes vivas, ou seja, o processo da vida, denominado AUTOPOIESE. A autopoiese, portanto, está intrinsecamente ligada à cognição. Isto implica em que a atividade de organização de todos os sistemas vivos é mental e as interações destes organismos com o seu ambiente é cognitiva. Conclui-se: a vida e a cognição estão ligadas definitivamente e a atividade mental é imanente à matéria em todos os níveis de vida.
Sem depender necessariamente de um cérebro e de sistema nervoso, conclui-se que, sob esta Teoria de Santiago, a cognição, percepção, emoções e comportamento envolvem todo o processo da vida.
Para se compreender a autopoiese
"Este sistema sofre mudanças estruturais contínuas ao mesmo tempo em que conserva o seu padrão de organização em teia. Nesta rede, os componentes produzem e se transformam uns aos outros, de duas maneiras distintas."
a) Auto-renovação. Os organismos vivos constroem sempre com a divisão das suas células. Em seguida, constroem estruturas. Na medida em que seus tecidos e órgãos substituem suas células contínua e ciclicamente, eles conservam a sua identidade global, seu padrão de organização.
b) Criação de novas estruturas. São as novas conexões da rede auto-influenciadas pelo ambiente ou pela dinâmica interna do sistema. "O sistema vivo se liga estruturalmente ao seu ambiente, através de interações recorrentes, cada uma das quais desencadeia mudanças estruturais no sistema. O sistema nervoso de um organismo muda o seu padrão de ligações nervosas a cada novo estímulo sensorial. Os sistemas vivos são autônomos e o ambiente apenas desencadeia as suas mudanças estruturais; não as especifica e nem as dirige."
Quando um organismo vivo muda suas estruturas para responder às influências ambientais, esta mutação altera o seu porvir e ele aprende. Interagindo com o ambiente, o organismo vivo, com o tempo, constrói a sua história e a sua estrutura viva é o próprio registro dos desenvolvimentos que alcançou: é o seu registro das mudanças estruturais anteriores. Seguindo estas reflexões conclui-se que se cada mudança estrutural influencia o seu futuro. "O comportamento do organismo vivo é determinado pela sua estrutura."
Liberdade e determinismo
Segundo H. Maturana, o organismo vivo é ao mesmo tempo determinado e livre. O comportamento é determinado; mas não é determinado por forças exteriores e sim pela sua estrutura, formada por mudanças estruturais autônomas sucessivas.
Varela e Maturana explicitam, também, que um sistema vivo não pode ser controlado, e sim "perturbado", e é capaz de especificar "quais são as perturbações do ambiente que podem desencadear as suas mudanças estruturais". Ele tem a liberdade de "decidir" o que constitui, para ele, uma perturbação. "Esta é a chave da Teoria da Cognição de Santiago". Por quê? Porque torna claro o seu domínio do cognitivo e define a sua extensão. Ele (o sistema vivo) "produz o mundo", como dizem Maturana e Varela.
No processo da vida "produzimos o mundo", ao contrário de "representarmos um mundo" que existiria, para nós, independente e por si: "Viver é conhecer".
Mente e cérebro
A mente é identificada com a cognição e com o processo da vida. Esta parece ser uma conclusão vinda da Antigüidade. Entretanto, com a Teoria de Santiago, ressurge novamente, vestida em roupagem científica e moderna. Na Antigüidade, a mente era um dos aspectos da alma, do espírito.
Na Teoria de Santiago, esta controversa questão - mente e cérebro - é conduzida com simplicidade e clareza. "A mente é um processo identificado com o processo do viver e o cérebro uma estrutura específica através da qual se dá esse processo."
Mente e cérebro, processo e estrutura são relacionados. A cognição não opera só através do cérebro; toda a estrutura do organismo faz parte deste processo, independendo de se este organismo tenha um cérebro e um sistema nervoso superior ou não.
E a consciência?
Como fica a consciência dentro da Teoria de Santiago?
Segundo esta teoria, a cognição é um fenômeno mais amplo do que a consciência. O que é consciência? É a experiência vivida e consciente que se manifesta em certos graus de complexidade cognitiva exigindo a presença de um cérebro e de um sistema nervoso superior.
William James é considerado, por muitos, como sendo o maior psicólogo surgido nos Estados Unidos. Viveu no século 19, e a noção de "consciência como sendo um processo" já fazia parte das suas considerações. James era cético quanto às doutrinas materialistas e as combatia ardorosamente; ao mesmo tempo, defendia a interdependência da mente e do corpo.
A sua voz perdeu o volume no tumulto provocado pelo cartesianismo que tomou corpo entre os psicólogos e cientistas naturais. Como "o que vai, retorna", já no século passado, nas décadas de 70 e 80, com as novas propostas humanistas e transpessoais sendo formuladas pelos psicólogos, encontrou-se um tabu - a consciência como experiência viva, na área de estudos das ciências da cognição.
Na década de 90, com o avanço da neurociência, a coisa mudou de figura. A consciência e o seu estudo ganharam importância e um campo de pesquisas concorrido e respeitado. Todavia - e apesar das muitas conferências do tipo "rumo a uma ciência da consciência", da bibliografia surgida e das reportagens científicas -, o tema sofreu debates controversos e acirrados e parecia que ninguém concluiria nada a contento. Impasse!
Mas o consenso começou a surgir na forma de dois pontos importantes: 1º) A "consciência primária", a forma de manifestação da consciência nos mamíferos (na maioria) e, talvez, em alguns pássaros e outros vertebrados; 2º) A "consciência de ordem superior" ou AUTOCONSCIÊNCIA, a noção de si mesmo, de quem pensa e reflete.
"Este tipo de consciência nasceu durante a evolução dos grandes macacos ou hominídeos, com a linguagem, o pensamento conceitual e todas as características que se manifestam na consciência humana."
Um osso duro de roer
"O problema central da ciência da consciência é o de explicar a experiência subjetiva associada aos acontecimentos cognitivos."
Considerado por todos como sendo o "osso duro de roer" da ciência da consciência, é o desafio de ter que se explicar a "sensação qualitativa" - qualia - que caracteriza cada estado de experiência consciente. A citação ao "osso duro de roer" foi feita num artigo de David Chalmers, filósofo, e é sempre lembrada e citada. "Para explicar a experiência consciente precisamos de um elemento extra na explicação", diz Chalmers.
Para compreendermos a consciência e para que a ciência da consciência seja formulada corretamente, necessitamos da "trança de três", trançada por Varela: física, bioquímica e biologia do sistema nervoso; e dinâmica não-linear das redes neurais.
Os cientistas serão forçados a aceitar um outro paradigma para o qual ainda torcem os seus narizes: os fenômenos subjetivos (ou análise da experiência viva), sem os quais o estudo da ciência da consciência jamais estará completo. Este estudo exige metodologia nova e profunda que poucos cientistas se resolveriam a empreender. Neste ponto, encontraremos verdadeiramente "o erro de Descartes", que o filósofo nos legou como herança. A divisão cartesiana entre mente e matéria - eu e o mundo - levou a humanidade a acreditar piamente que "noves fora o observador humano", o mundo poderia ser descrito objetivamente - e este se transformou no ideal científico vigente até hoje, mesmo com o advento da física quântica, o estudo dos fenômenos atômicos. A Teoria de Santiago representa uma ajuda e tanto nesta mudança necessária de paradigma, pois deixa claro que a cognição não é a representação do mundo - mundo independente de nós mesmos -, e sim a produção de um mundo decorrente do "processo de viver".
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